Memórias

agosto 24, 2018

Ela olhou para o alto e viu o céu. Era um dia lindo sem nuvens, apenas com o trincar do sol nos olhos. Sentia-se livre, ao mesmo tempo cansada. Pela vida que viveu, por tudo que já havia feito. Lembrou como via tudo tão rápido pela janela do ônibus e a sensação disso. Era mais ou menos assim que estava: nem um lugar nem em outro, apenas no limbo de um caminho grande.

Sentada numa espécie de mármore, balançava as pernas olhando para o alto com os braços esticados para trás, bem relaxada. Entre um ou outro minuto aparecia alguém perto, mas estavam cansados demais em sua própria vida para reparar alguém ali. Ela estava grata. No auge da sua plenitude.

Saiu andando entre aquela selva de pedra pronta para desbravar tudo. Não ia perder mais nenhum minuto apenas contemplando a vida, mas por algum motivo não conseguiu ia para longe. Se sentia mais livre e desconectada do que realmente estava. Sabe quando você planeja algo para si, mas ainda não consegue fazer?

Novamente um cortejo perto dela. Isso a fez lembrar do colégio na época dos desfiles cívicos. Era absolutamente desgastante ficar sob o sol quente, mas a alegria de estar com os amigos compensava tudo. Se bem que o clima ali não era tão agradável assim. Entre uma flor e outra, começou a lembrar sobre como se tornou adulta. Das dificuldades, os medos e tudo que ela pensava que não ia passar, mas passou. Todas as dores da vida passam. Nós é que não conseguimos perceber a tempo de comemorar. E quando percebemos, já passaram 50 anos.

E nessa caminhada de um lado para o outro, esbarrando com alguns cachorros errantes, alguns amigos de estrada, viu vindo em sua direção pessoas que amava. Todas longe de estar felizes como sempre e como ela. O que faziam ali? Por que ela estava ali? O badalar do sino revelou algo. As lágrimas, a tristeza. Seguiu junto calada. Achou que seria indelicado falar algo já que havia se distraído tanto. Seus pais não estavam e algumas pessoas pareciam mais velhas do que se lembrava.

Outro cortejo. Mais lembranças. Vislumbrou dias que considerava os mais felizes de sua vida e que, incrivelmente, eram sempre superados por outros. A alegria de casar, o nascimento dos filhos. Se pegou rindo por tamanha visão e como aquilo podia mexer consigo. Devia ser mais uma daquelas “visões” que ela costumava ter de sua vida. Sonhando com algo que talvez nunca chegasse. Mas não era.

E nos passos vinham histórias, memórias, lembranças. Lembranças de uma vida que não lembrava e que não sabia. E de repente, estava sob o mármore novamente. Sentada, balançando as pernas e olhando para o alto com os braços para trás. Sentiu a vida em suas mãos e o peso de tê-la vivido tão rápido em setenta anos que se esqueceu.

As pessoas chegaram, a caixa de madeira também. Olhou para baixo e viu a si mesma dentro daquela estrutura. Como? Olhou para seus braços tentando entender e viu que quase cinquenta anos separavam as duas, apesar de saber e sentir que ela estava ali. E nos olhos das pessoas, tristeza, choro. Ela não entendia, não era justo assim. Era nova, jovem e feliz. Como podia não estar exatamente como se sentia?

E todos foram embora assim como chegaram. Vagando, tristes. Ela ficou como estava: pensando, sozinha, sentada sob sua própria sepultura. E a vida foi embora em um instante assim como chegou, mas ela ainda estava ali. “Morrer é assim? Ficar aqui e ser esquecida? Um eco de gente morta, lembranças e memórias? Datas em lápides, histórias esquecidas, cachorros brincando atrás de pessoas tristes? “, pensava. Em meios de tantos pensamentos viu o dia passar enquanto ela ia se desconectando.

As vezes ria pensando que ali era o lugar mais democrático do mundo, onde todas as pessoas eram iguais. E de um jeito tranquilo, entendeu que não era o fim, apenas o começo de algo que não conhecia. Com uma boa vida, boas lembranças e muita satisfação e alegria, descansou pronta para (talvez) a próxima jornada.

Seu último pensamento foi de que não existe nada além da nossa vida aqui. E de que aquele lugar era a prova disso. Nada que alguém tenha, de fato, vivido e voltado para contar, pelo menos. Então, vivamos com alegria e aproveitemos cada momento com sabedoria. Pois se o futuro nos reserva surpresas, do presente somos totalmente responsáveis. E aqui ou lá, seremos internamente jovens e capazes para sempre.


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